6.08.2005

O lado negro da globalização

Reflexões provocadas por 3 livros* que li no ano transacto e que finalmente assimilei por completo. Andei uns meses a tentar digerir tudo o que neles é dito, apesar de a mensagem ser aparentemente simples e não ser nova. Cada vez que esgravatava à superfície jorravam sempre mais coisas novas.

No Logo

As pessoas compram produtos de marca por várias razões. Pelo status, pela garantia de qualidade (nem sempre verdadeira), por se identificarem com um estilo de vida promovido por essas marcas, por um sentimento de pertença,…., em suma porque gostam de marcas. O ser humano gosta de marcas e de consumir.
As grandes multinacionais já não se limitam a vender produtos. Neste momento vendem conceitos, estilos de vida, experiências afectivas, vínculos ao consumidor. O que vendem mesmo é a própria marca. O produto nos dias que correm é totalmente secundário.

globalization


Em torno do Vesúvio, nos arredores de Nápoles, num dos sítios mais poluídos da Europa.
Quase tudo o que se vê nesta paisagem são fabriquetas que se dedicam à contrafacção de artigos de grandes criadores: Malas, óculos de sol, roupa, sapatos.
Este negócio cresceu 1300% nos anos 90 tornando a Itália no maior produtor europeu de produtos contrafeitos. As fabriquetas são geridas principalmente por asiáticos, não têm quaisquer condições de salubridade e os empregados não têm contrato de trabalho ou são emigrantes ilegais.
Os produtos contrafeitos são distribuídos e vendidos por uma rede bem organizada (geralmente senegaleses) a 1/10 do preço dos originais.








As grandes empresas têm lucros superiores ao PIB da maior parte dos países do mundo e investem somas astronómicas em propaganda. Esses lucros escandalosos são obtidos com base num sistema produtivo que consiste na deslocalização da produção para países pobres explorando muitas vezes mão-de-obra barata, indefesa, sem direitos e semi-escrava. Ao todo setenta países e 27 milhões de trabalhadores. A vida nestes países não parece ter melhorado pelo facto de terem investidores a pôr lá estas fábricas. O fosso entre os países mais ricos e os mais pobres intensifica-se em vez de diminuir. Os países do terceiro mundo gastam mais dinheiro a pagar dívidas do que a fornecer educação e condições sanitárias à população. As consequências nos países do primeiro mundo são um aumento do desemprego devido à deslocalização da produção.


globalização

Condições de vida em Dhaka, Índia. Uma aldeia em bambu construída directamente sobre efluentes de indústrias de curtumes não tratados.
A água retirada pela bomba está contaminada. O chão está pejado de lixo variado.
Nesta região as crianças são abandonadas em estações de comboio porque os pais não podem alimentá-las. A maior parte morre de fome ou é levada para prostíbulos.






Até aqui nada de novo. Já todos mais ao menos sabemos isto. Já todos pensamos duas vezes antes de comprarmos Nike, McDonalds, Disney, Microsoft e etc… (Espero que sim. Se não pensou 2 vezes pense agora). Já todos pensámos 2 vezes antes de comprarmos coisas de que não precisamos. Mas nem toda a gente tem a mesma atitude em relação a este assunto: uns boicotam, outros apenas condenam passivamente. Quem tem um exemplo a dar alinha muitas vezes pela pior atitude:

- Estrelas do mundo desportivo e cinematográfico continuam a publicitar produtos para estas empresas despudoradamente.
- Nas escolas vendem-se alimentos nocivos para a saúde e afixam-se impunemente cartazes de propaganda a multinacionais gananciosas sem contrapartidas.

Não deviam rolar cabeças nestes e noutros casos?

Mas ao falarmos destas multinacionais e dos seus interesses falamos no abstracto porquê? Quem faz isto não é a empresa são pessoas. Pessoas que trabalham na empresa e a gerem. E porque é que a gerem assim? Haverá falta de responsabilidade social? Será que gostavam que lhes acontecesse o mesmo?

O único comentário que me ocorre é tão cruel quanto a realidade. Parafraseando um general alemão da 2ª guerra mundial: - “Ainda um dia pagaremos tudo isto com as nossas próprias filhas num bordel para negros."


globalização


China.
Habitações improvisadas por trabalhadores migrantes num edifício em construção.








O livro de Klein* é um bom ponto de partida para se meditar sobre uma cultura e uma economia dominadas pelas marcas. Parte do livro apenas é aplicável no contexto norte-americano. Klein é actualmente uma das faces mais visíveis da cultura anti-globalização e irritou bastante gente com este livro. Ao ponto de a influente revista “The Economist dedicar 3 números duplos seguidos a denegri-la. A revista perdeu mesmo alguma credibilidade ao fazer sair um número com a ofensiva capa abaixo. E Klein agradeceu a propaganda. O livro é no entanto muito menos radical e negativista que a obra de Korten*. Mas Korten* não tem a visibilidade mediática de Naomi Klein.
O livro* editado por Daniel Schwartz é um documento fotográfico impressionante e imprescindível para qualquer pessoa que se interesse por mercados emergentes, crescimento económico e seu impacto em sociedades.

The economist

Quando for ao multibanco repare num item do menu que permite fazer donativos. Tem factura e permite descontar no IRS. Alivie a consciência e dê. Há quanto tempo não o faz?


no logo

Shenzhen, China.
As duas faces do boom económico chinês.
Para dar lugar aos modernos arranha-céus todos os dias são destruídos bairros tradicionais inteiros. As pessoas que lá vivem são obrigadas a deslocar-se para a periferia. A demolição é feita sem maquinaria (tudo à mão). A maior parte dos trabalhadores migrantes que aqui trabalha era até recentemente agricultor ou pescador. Agora fazem qualquer trabalho para sobreviver. O que pode incluir recuperar aço ou cobre de estruturas demolidas para ganhar cerca de 40 € por mês. Por entre plantações de fruta e campos de arroz nascem centros comerciais e sedes de multinacionais. Em 20 anos a população cresceu 200 vezes.




Klein mantém um blog:
http://www.nologo.org/

*
- No Logo - Naomi Klein(2003), relógio d’água editores.
- When corporations rule the world - David Korten (2001).
- Tales from a globalizing world - Edited by Daniel Schwartz (2003?), Thames&Hudson.

4 Comments:

Blogger Unknown said...

Conheces a revista Colors, editada pela Benetton? É excelente e dedica-se a estes assuntos, paradoxalmente qb.
Tenho uma ideia de ter lido uma das Economists que falava sobre o No Logo e de haver um debate interessante, apesar do estilo algo agressivo deles (que é o normal, também).
Parece-me que não vale muito a pena pôr em causa o que as multinacionais fazem -- são máquinas de fazer dinheiro, como qualquer empresa, só actuam à escala mundial e por isso podem facilmente escapar a qualquer regulamentação.
Não li o No Logo (curiosamente a 1ª pessoa que vi a lê-lo foi um amigo publicitário, que me disse muito bem dele), conheço mais ou menos a argumentação e ela tem provavelmente razão. O que perturba é que, quanto a mim, os movimentos e pessoas que se identificam com estes pontos de vistas acabam por cair numa salgalhada ideológica que tem como denominador comum um pessimismo radical anti-'mundo moderno'. E eu, por mais que compreenda que o contacto entre o nosso mundo moderno e o resto do mundo desequilibrou radicalmente este último, sou um 'moderno' convicto -- não me concebo a viver noutra época que não esta. Além de que, de qualquer modo, não se pode fazer marcha atrás no tempo. Portanto, mantenho-me perplexo à espera que alguém tenha boas ideias.

7:51 pm  
Blogger Unknown said...

Ah, e concretamente quanto à "falta de responsabilidade social" dos empresários -- infelizmente parece-me normal que não a tenham. Só mudam se forem muito pressionados, foi (quase) sempre assim. Os poderes políticos também. De modo que o melhor é pensar em maneiras de minorar o problema, sem querer deitar fora o capitalismo com a àgua suja dos excessos. Não vejo alternativa.

8:00 pm  
Blogger A. R. Ray said...

A Benetton para além dos excelentes anúncios é uma empresa que tem um código de ética rigoroso que também aplica a subcontratados. O odiado Bill Gates (eu também odeio a Microsoft!) doa todos os anos valores astronómicos a ONGs. Mas muitas empresas tem outra política/s.

Discordo do que dizes: É possível ter lucros fabulosos sem cometer abusos indesculpáveis. E existem várias ideias para corrigir comportamentos menos éticos por parte de multinacionais mas normalmente não há vontade política (leia-se os políticos são reféns das ditas multinacionais por via dos financiamentos que os seus partidos recebem) para serem postas em práctica. Eu diria mesmo que o que falta é políticos com ideias e carisma. O panorama político internacional é miserável e medíocre. Não sei se a humanidade está à espera de outro Maio68, outra revolução francesa, outra revolução cultural ou de um novo comunismo. Eu infelizmente não vejo nada a fermentar no horizonte.

No final do "No Logo" há uma série de gráficos com os gastos anuais em promoção/publicidade de algumas empresas. Os valores são escabrosos. É dinheiro que podia ser utilizado para fazer algo útil que simultaneamente pudesse ser usado como publicidade matando 2 coelhos de uma cajadada - Estilo "Nike constrói aldeia no Burkina Faso" . O "no logo" é um bom livro embora alguns temas sejam apresentados de forma maçuda. Mas a argumentação é muito boa e o contributo que dá para aumentar o "awareness" das pessoas é incontornável. Antes de o ler eu sabia que havia empresas que exploravam pessoas. Depois de o ler a palavra "exploração" ganhou um novo sentido.

Não sou de ficar à espera que apareça alguém com soluções. Pessimista q.b. acho que não irá aparecer ninguém e que se parecer não traz ideias de jeito. Vou dando o meu contributo. Faço doações monetárias, em géneros e em trabalho. Já fiz trabalho voluntário muitas vezes. Já pertenci a inúmeras organizações. Em muitas delas havia gente que não sabia o que fazia, outros que lá estavam pela promoção política e muitos que tinham ideias com que eu discordava plenamente. Numa delas "de ambientalistas radicais" bati com a porta quando cheguei à conclusão que na opinião deles tudo o que não fosse deixar a natureza fazer o seu trabalho deixando que uma selva florescesse por aí era um "crime ambiental". Sim, por vezes a ideologia sobe à cabeça mas se cruzarmos os braços não aparece nada feito.

Nunca perco uma oportunidade de reclamar de um serviço se me atenderem mal. Tenho mesmo uma vasta colecção de cartas tipo de reclamação. Mas atenção que NÃO SOU NENHUM VELHO DO RESTELO e apraz-me saber que de há uns cinco anos para cá a maioria dos serviços PÚBLICOS não só responde à reclamação como investiga o que se passa.

10:26 am  
Blogger Unknown said...

Quando falei de perplexidade não me estava a referir a cruzar os braços. Contributos com os que mencionas são importantes. Também vou reclamando e participo em iniciativas quando me identifico com elas. Infelizmente são poucas. Quanto aos serviços e à administração pública, parece-me também que há um défice de reclamações. Há uma mentalidade um bocado niilista, de que não vale a pena reclamar porque 'eles' fazem o que lhes dá na bolha. Não é bem assim, e além disso essas organizações também têm pessoas bem intencionadas que precisam de apoio público.
Voltando ao No Logo, lembrei-me que um dos argumentos contra o livro era o de ser demasiado focado em determinadas empresas que gastam grande parte do orçamento em publicidade. Talvez faça sentido. Não me parece que isso seja assim tão importante. Pode parecer economicamente irracional, mas não é dinheiro deitado à rua. Quem compra uns ténis de marca está a pagar também uma quantidade de pessoas envolvidas nesse processo de publicidade e indirectamente muitas outras coisas. Há muitas outras empresas que não gastam dinheiro em publicidade e não são menos 'irresponsáveis' que essas. Penso que o problema é mesmo o facto de haver empresas que assumiram dimensões mundiais e escapam assim a todo o controlo político, administrativo e fiscal porque não há organizações internacionais com poder suficiente para enfrentá-las. Por exemplo, os paraísos fiscais são consensualmente um problema grave, que só se resolve com uma cooperação a nível mundial para acabar com eles -- o Silva Lopes falava nisso numa entrevista que deu há tempos ao Público.
Quanto à questão política, quanto a mim o problema é precisamente o de as organizações que se opõem a esta ordem económica mundial funcionarem na lógica dos amanhãs que cantam, e fazem falta ideias sobre como mudar as coisas mantendo o que é bom nos sistemas actuais (que é muito).

5:51 pm  

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