2.25.2008

Literatura Infantil I

Começa a ser muito irritante a proliferação de listas e livros que apresentam ao leitor os "melhores livros infantis", não porque não apresentem excelentes obras mas pela ausência de títulos não anglo-saxónicos. Outra nuance aborrecida é o facto de quem as escreve não saber de que fala já que muitos destes "best of" incluem frequentemente livros que são totalmente desadequados para crianças. Uma destas listas saiu recentemente no inatacável Telegraph. Intitula-se 100 livros que qualquer criança devia ler e comete os 2 erros de palmatória que mencionei. Será que as crianças inglesas não deveriam ler excelentes livros de autores não anglo ou simplesmente quem compilou a lista não conhece outra coisa?

Partindo do princípio que por literatura infantil se entende livros para idades entre os 3 e os 10 anos, sejam eles lidos pelos próprios ou por terceiros aos petizes, comecemos por perceber que os seguintes livros, frequentemente apresentados como sendo para crianças não o são:

- D. Quixote de la Mancha- É uma novela clássica de cavalaria do Séc. XVII sendo considerado uma das obras mais influentes e fundadora da literatura ocidental. Trata-se de um livro com centenas de páginas, linguagem e termos do séc.XVII e que inclui uma componente de critica social. A segunda metade do livro é uma clara e séria reflexão sobre a desilusão/decepção. Embora a primeira parte tenha sido escrita como sátira é bastante díficil para adultos do Séc. XXI entender parte da comicidade do livro quanto mais crianças.

- As viagens de Gulliver - Foi escrito como crítica ao sistema político e social e inclui opiniões nada lisonjeiras, cruéis e discriminatórias sobre mulheres, crianças e pobres. As viagens, os gigantes e os pigmeus são totalmente acessórios servindo para demonstrar apenas os podres do sistema social da época.

- As aventuras de Huckleberry Finn- Uma das grandes novelas americanas do Séc. XIX, retrata o racismo (e não o defende) nos estados sulistas dos EUA. A história inclui um pai alcoólico e violento, violência racista extrema, a palavra "Nigger" e uma personagem principal- Tom Sawyer- envolvida num gang de pequenos malfeitores. A agressão gratuita e aprisionamento de pessoas com base na sua cor dificilmente será compreendida por crianças actuais (e ainda bem). A linguagem tem um nível de complexidade inadequado a uma criança pré-adolescente.

- O diário de Anne Frank - Por razões óbvias (pelo enquadramento histórico e não pelo conteúdo) é um livro passível de aterrorizar qualquer criança com menos de 10 anos para o resto da vida.

- Heidi/ Mulherzinhas/ Anne of Green Gables e etc..- Estes livros fazem todos parte de um infelizmente enorme conjunto de livros que inferioriza crianças órfãs ou pobres (sobretudo do sexo feminino) e as tenta moldar a um modelo social (feminino) totalmente decadente e desadequado. É o mito do órfão coitadinho! Que foi recolhido por uma bondosa família! e agora tem de trabalhar para o merecer! e portar-se como uma senhorinha da sua condição social! Normalmente estão imbuídos de uma religiosidade beatífica e apresentam sermões morais que provavelmente só vão fazer com que os nossos filhos desenvolvam fortes sentimentos de culpa pelo mínimo pecadilho. A esta categoria junto os inenarráveis livros da "Anita", que no original belga se chama "Martine", retrógrados, sexistas e burguesoídes.

- Tarzan- Uma grande história mas impregnada de racismo e machismo. A pôr de parte.

- O deus das moscas AKA o senhor das moscas- Um livro extremamente visceral sobre a psicologia de grupo, a crueldade das crianças, o poder e a impunidade. Pode parecer bonita uma história com um grupo de meninos sozinhos numa ilha com palmeiras mas não é de todo. Subjacente está uma crítica à organização social e política ocidental.

- As Mil e uma noites (conhecido sobretudo pelas histórias de Ali-Bába, Sinbad, Aladim e Sherazade)- É uma recolha de contos tradicionais milenares persas. No Séc. XI já havia referências à obra e o mais antigo manuscrito que existe desta data do Séc. XIV e encontra-se na Biblioteca nacional de Paris contendo cerca de 300 contos. Actualmente, as mil e uma Noites são compostas por vários volumes que agregam tradicionais histórias Persas, Sírias, Egípcias, Iemenitas e de outros países vizinhos. Existem várias versões de vários tradutores com extensão igualmente variável. O original não incluia nem o Ali-Bába, nem o Aladim nem o Sinbad. Estas 3 histórias foram acrescentadas por ocidentais que traduziram a obra. As histórias originais incluíam muito erotismo com virgens muçulmanas, pederastia e passagens claramente obscenas. Se vai comprar esta obra ou um livro com contos dela retirados certifique-se que é uma versão adequada para crianças e que é uma tradução ou adaptação de qualidade.

- Grandes Esperanças- O magistral clássico de Dickens não foi escrito com o intuito de entreter crianças. O livro centra-se na vingança, no ressentimento, no sofrimento e nas diferenças entre classes sociais. Pouco adequado para crianças.

-Moby Dick- O épico de Melville tem um nível de complexidade que não pode ser apreciado ou explicado devidamente a uma criança. Das referências bíblicas às metáforas usadas para exprimir conceitos abstractos, dos longos solilóquios ao simbolismo de várias passagens, o estilo caleidoscópico da obra-prima de Melville não é de leitura fácil. A perseguição obsessiva à Baleia pode ser deixada para mais tarde.

O facto de os livros acima não serem para crianças, não invalida que se faça uma narração oral da história(s) expurgada da parte desadequada, oferecer estes livros a miúdos é que não é boa ideia.

Labels:

0 Comments:

Post a Comment

<< Home

--------------------------------------------------------------The End------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------